A primeira vez
São 23h30m de uma quarta-feira chuvosa e quente de dezembro de 2010. Eu tenho 38 anos, duas filhas e uma montanha de compromissos do mundo real. Mas, depois de um dia de trabalho duro, sinto uma estranha vontade de ligar o computador e parar tudo para ver, na tela do computador, o velho Pipe Masters.
Abro a saborosa cerveja tcheca 1795 – presente das amigas Mari e Lygia – e me delicio como criança com os canudos de Dusty Payne, Adrian Buchan, Jeremy Flores e, mais que todos os outros, de Stephanie Gilmore.
De um dos tubos, sai a pergunta que volta e meia me ronda. O que faz de uma pessoa surfista para sempre? Estou cada vez mais certo da resposta: é o primeiro dia, a primeira prancha, a primeira onda. Isso vale para o campeão do mundo ou para um simples amador como eu, que luta contra as deficiências técnicas e físicas para surfar pela eternidade.
Certa vez escrevi sobre o assunto no blog Surfe Deluxe, mas vale recontar a primeira vez de um surfista comum. Foi em 1983. Eu tinha 10 anos. Era um tipo tímido, franzino, ombros curvados para dentro, que de forte ostentava apenas as pernas, herança genética somada à infância gasta no futebol de salão do Flamengo.
Nas férias de verão, minha família se despencava para a casa do Vô Átila e da Vó Maria, em Cabo Frio. Ficava no bairro de São Cristóvão, perto de uma pequena favela. Foi na parte pobre da vizinhança que eu aprendi a soltar pipa, a passar cerol, a correr do carro da polícia sem saber o motivo. Foi lá que eu me tornei um grande amigo dos irmãos Oziel e Oséias.
Oséias era o mais velho. Um bom atacante nas peladas do terreno baldio ao lado lá de casa, mas entrou para o crime muito cedo. Ficou conhecido como o assaltante "di menor". Seu nome vivia nas páginas de polícia dos jornais locais. Era procurado. Lembro da imagem do quarto dele apinhado de aparelhos de som, de roupas e tralhas que contrastavam com a parede descascando, com a pobreza. Pichou seu apelido no muro do barraco. Pouco depois, foi encontrado em casa por seus algozes.
Morreu assassinado. Meses antes, ainda mantinha o hábito de almoçar com minha família. Lá de casa, jamais levou nada.
Pelo contrário, só deixava alegria.
Oziel tinha a minha idade. Depois da morte do irmão, ficou ainda mais próximo da gente. Vivia descalço, sem camisa e com uma bermuda velha, mas não passava aperto. Quando queria uma água de coco, escalava os antigos coqueiros gigantes do Coqueiral. Retirava a casca dura com os dentes. Disputava com os passarinhos o fruto das amendoeiras de rua. Ganhava. Era um mestre na pipa. No mar, mostrava vontade, mas esbarrava na natação débil.
Certo dia, no verão de 83, Oziel apareceu lá em casa com uma prancha velha, meio tosca, toda tecada. Disse que tinha achado na rua. Eu não tinha por que duvidar. Ele queria vender a bóia por uma nota de um cruzeiro. Meus esportes eram o futebol e a bicicleta, mas tinha curiosidade de saber como era ficar em pé no mar. Paguei com o que tinha pro lanche.
Era uma modelo fish, swallow, duas quilhas de madeira, com um desenho que mais tarde descobri ser réplica do modelo do Larry Bertlemann - o símbolo da Pepsi em pé.
Eu tinha 10 anos. Corri para a praia do Forte e, na primeira onda, fiquei em pé. Um sonho, um ponto de mutação. Nas ondas seguintes, tentava achar o corte, fazendo um estilo que eu acreditava ser legal. Numa delas, fechei os olhos – essa ninguém faz, eu pensei. Saí da água com as extremidades enrugadas pela água e a face marcada pelo mais largo sorriso da vida.
Aquele momento influenciou para sempre a minha existência. Boa parte do que sou e do que faço – inclusive a coluna que você lê agora – está irremediavelmente ligada à experiência vivida no primeiro dia com a minha primeira prancha. É como se, naquele dia, houvesse uma alternativa ao caminho principal da estrada, com uma placa: siga por um caminho diferente.
Mas o primeiro dia não acabou. Dia desses, na cantina do jornal O Globo, onde trabalhei por nove anos, a prancha de 1983 voltou num papo com o subeditor de Arte Fernando Alvarus, grande amigo que provavelmente sabe surfar há mais tempo que eu sei andar.
Falei sobre a minha fish com o desenho do Larry Bertlemann, e ele me contou que também foi dono de uma réplica do surfista havaiano nos idos de 83. Ele contou que também teve uma.
Era uma prancha comum na época, todo mundo queria aquele desenho. A dele foi feita em casa, a partir de um longboard descascado. O outline saiu de folhas de jornal emendadas com cola, a partir das fotos da prancha do havaiano. A laminação foi feita na casa de um amigo do Arpoador, o Márcio Esquisito. Uma placa de compensado achada na rua serviu de matéria-prima para as quilhas. Típica história de um cara que, anos mais tarde, trabalharia num departamento de Arte de jornal.
Meu camarada contou ainda que, meses depois da estréia, no tal ano de 1983, levou a bóia para uma viagem à Região dos Lagos com amigos. Em algum lugar entre Cabo Frio e Búzios, naquele verão de 83, a prancha voou do rack. Ninguém percebeu.
Sorte do Oziel, sorte minha. Das grandes.
Alvarus entendeu a estúpida coincidência quando me viu de olhos arregalados, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir. Uma história inacreditável, mas verdadeira.
Falei um pouco sobre o meu amigo de infância de Cabo Frio, que por um assustador acaso da vida achou a prancha do Alvarus largada na estrada e mudou completamente a minha vida. Como o irmão, Oziel acabou seguindo pelo caminho errado. Morreu pouco depois de ter me vendido a prancha. Não tive tempo de mostrar a gratidão. Tenho certeza de que ele teria gostado de conhecer o Alvarus.
E talvez até se tornasse um surfista para sempre, como todos nós.
Nota: Alvarus fez a ilustração antes de saber da incrível coincidência.
Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.
Bom o depoimento..É isso mesmo...Quem é é!!!
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